Da série: COMO É NÃO CONSEGUIR SE MEXER
Episódio de Hoje: QUANDO SEU MAIOR DESAFIO É O PRÓPRIO CORPO
“Ser cuidado há 54 anos me trouxe inúmeras percepções e aprendizados, entre eles, a necessidade de entrega e confiança.”
Primeiramente, um aviso aos navegantes: Esse texto não tem a intenção de romantizar e muito menos de dramatizar minha experiência pessoal. Para provar, inicio com uma confissão super sincera (A) e, em seguida, um relato com uma boa dose de ironia (B).
(A) Confesso que não conseguir se mexer e depender de alguém para tudo, 24 horas por dia, é um saco! É isso mesmo que você leu. É um saco!
(B) Dentre os inúmeros perrengues que um tetra vive no dia-a-dia, as brigas desleais com os pernilongos numa noite de verão, com certeza estão no Top Five dos momentos mais desesperadores. Comigo é assim: Quando estou sozinho, minhas únicas armas contra esse maldito inseto são sopro e cuspe. (Para o leitor não ter que voltar a ler de novo, eu repito: sopro e cuspe são meus únicos recursos contra os pernilongos). Mas, não adianta nada, porque, normalmente, ele continua ali, indiferente ao meu esforço, me sugando impiedosamente. E sou obrigado a vê-lo saindo de barriga cheia tocando corneta. Calma! Ainda não acabou. O pior é a coceira que fica. Depois, eu chamo alguém para me coçar e ele(a), quase sempre, não coça no lugar certo na primeira vez. Às vezes, demora tanto para achar o lugarzinho exato da picada, que eu dispenso sua ajuda porque a coceira já passou.
Bem, agora sim vamos à reflexão do dia…
Apesar de sempre ter recebido muito carinho e presenciado plena dedicação por parte de minha família, a situação de total dependência nunca deixou de ser desconcertante para mim, sobretudo quando percebo que a paciência dos que cuidam de mim entra no modo ‘contagem regressiva’. Mas isso é perfeitamente compreensível, pois, às vezes, nem eu sei o que deve ser feito para estar confortável.
“Por favor, levanta meu braço. Nããão, o outro braço! Coloca minha perna direita sobre o joelho da perna esquerda. Continua doendo, desce ela novamente. Puxa minha bunda para a esquerda. Foi muito, puxa de novo para a direita.” E por aí vai…
Pequenos movimentos podem aliviar um formigamento, uma câimbra ou uma dor. Um centímetro de deslocamento já traz um certo conforto para quem possui uma estrutura física fora dos padrões. Eu sei, é difícil de entender.
As tentativas para encontrar a posição adequada para dormir, para comer, para assistir TV ou para fazer cocô, visam, basicamente, facilitar as “coisas”. Porque, estar/ser imóvel, requer auxílio constante para melhorar a circulação e, consequentemente, suavizar um ponto de pressão que está começando a incomodar, evitando, portanto, dores musculares e até o surgimento de escaras.
Creio que o bem-estar geral é resultado do grau de autoconhecimento, e a percepção corporal de si mesmo faz parte do processo. Ao longo dos anos, descobri que, me conhecer fisicamente, facilita identificar os pontos mais resistentes e mais vulneráveis do meu ‘corpitcho’. Porém, antes de tudo, eu precisei me aceitar e ter um bom relacionamento com minha autoimagem, admitindo, inclusive, todas as minhas fragilidades. (Afinal, é o que tenho pra hoje… rs).
Ah! Autoaceitação tem tudo a ver com autoestima. Contudo, uma boa autoestima não significa demonstrar uma eventual força que não existe. Alguém já dizia que, reconhecer suas fraquezas – físicas e emocionais – é sinal de sabedoria. Acrescento que chorar também.
Fotos: Eu utilizando o guincho de transferência (Alfredão), o BiPAP e a cadeira de rodas motorizada.
No meu caso, as características da AME (que são: a fraqueza e flacidez dos músculos, a escoliose acentuada – que muda completamente o “centro de gravidade” do corpo – e a preservação da sensibilidade – que a maioria das pessoas não sabe), impactam fortemente em meu equilíbrio e na capacidade respiratória. Com o tempo, criei uma mecânica própria e peculiar para executar simples atividades, como me alimentar, a fim de mastigar e digerir de forma cômoda e segura. Aquele jeitinho que só eu compreendo de fato.
Meu corpo fala comigo, e estou atento a todos os sinais emitidos por ele. Isso me permite entendê-lo, me levando, assim, a prever quanto tempo, aproximadamente, consigo permanecer em uma determinada posição.
Ser modelado por outras mãos há 54 primaveras (da vó, da mãe, do pai e, hoje, pelas mãos mágicas da esposa) me trouxe inúmeras percepções e importante aprendizados, um deles, não ter medo e nem vergonha de me expor, além de uma total entrega e confiança durante esses momentos. Do mesmo modo, precisei elaborar algumas estratégias mentais para viver bem, não só com os outros, mas sobretudo comigo mesmo.
A tetraplegia/tetraparesia dificulta a busca de uma qualidade de vida satisfatória, tendo em vista que é necessário um conjunto de medidas e equipamentos assistivos básicos, entre eles, a cadeira de rodas motorizada e o guincho de transferência. Para indivíduos com AME, tudo é mais complicado, pois, geralmente, precisam de uma série de aparelhos que ajudam a respirar, tossir e engolir, sendo o BiPAP essencial para a respiração. Há 14 anos, minhas noites são seguras e meu sono reparador graças a ele, que ainda me oferece sonhos mais “vivos”. E, somando-se a essa série de divinas providências, o tratamento com o Spinraza está me proporcionando maior disposição, inclusive respiratória. Outros itens que contribuem para minha qualidade de vida são o Alfredão e a Vanderleia, apelidos carinhosos de meu guincho e de minha Kombi, respectivamente.
Foto: Minha filha Lavínia me dando comida, lavando minha cabeça e escovando meus dentes.
Entretanto, não podemos generalizar o entendimento sobre o que é melhor ou pior para a saúde física e mental da pcd, visto que as particularidades de cada pessoa são completamente distintas. O que é bom para um, pode não ser para o outro. Comigo, até os objetos inusitados podem servir como adaptação, apoio ou suporte para adequar minha postura. Atualmente, utilizo uma pedra para pressionar meu quadril direito (Minhas vivências não devem ser usadas como parâmetros… OK?).
Falando agora sobre conexões… Quando os cuidados diários ocorrem em um contexto familiar, a relação entre ambos – quem cuida e quem está sendo cuidado – leva a uma cumplicidade íntima que envolve sentimentos recíprocos, como o amor e o respeito. E todas estas questões possuem uma compreensão diferente quando a pcd fica em silêncio o tempo todo. Refiro-me à complexidade em cuidar de alguém que não consegue expressar suas necessidades, por exemplo, quem apresenta um grau elevado de paralisia cerebral. Essa circunstância requer, dos cuidadores, uma minuciosa atenção aos detalhes e aos sinais demonstrados, até os mais sutis, principalmente às expressões faciais. Um movimento incomum e discreto, um olhar diferenciado ou um som singular, podem representar uma dor ou simplesmente um desconforto físico.
Finalizo com um questionamento que me causa muita inquietude e, pela sua importância, será o mote do meu próximo texto: E quem cuida de quem cuida?